domingo, 14 de fevereiro de 2016

Que aconteceu durante o êxtase de Francisco de Assis?


Os mistérios de amor não se divulgam: São Francisco guardou ciosamente este segredo. Confessou, no entanto, que recebera nessa altura revelações sublimes, mas nunca quis
comunicá-las.
Quando a visão se desvaneceu, uma transformação maravilhosa tinha-se operado nele; na sua carne estavam gravados os sagrados estigmas da Paixão.
Grandes feridas lhe rasgavam as mãos e os pés: nas cicatrizes percebiam-se nitidamente as cabeças negras dos pregos.
Uma chaga mais larga abriria o seu costado e deixava filtrar algumas gotas de sangue. Francisco tornara-se um crucificado vivo.
Um prodígio assim não podia passar inadvertido.
Apesar de todos os esforços para afastar as curiosidades indiscretas, o Santo não conseguiu esconder inteiramente os estigmas. O seu prestígio, já tão grande, aumentou ainda mais: a sua vida terminava numa espécie de apoteose.
O Serafim que imprimia no seu corpo as chagas de Cristo, também as enterrara no seu coração. A partir daquele dia, Francisco não fez mais do que esmorecer lentamente no duplo martírio da dor e do amor.
Ainda percorria penosamente os caminhos da Úmbria, a pregar menos pela palavra do que pelo exemplo. Deixava, ao caminhar, irradiar da sua alma o imenso amor pelo divino Mestre; manifestava-o em termos tão veementes, que sentia por vezes a necessidade de se desculpar.
“Não fostes Vós que nos destes – dizia ele ao Salvador – o exemplo desta sublime loucura? Vós vos lançastes à procura da ovelha desgarrada; caminhastes como um escravo, como um homem inebriado de amor”.
Para adornar a sua coroa, Deus mandava-lhe as últimas provações.
O Santo notava que alguns religiosos, embora poucos, desejavam restringir a pobreza da Ordem; previa que os seus filhos atravessariam, depois de sua morte, uma crise perigosa.
A esta tristeza acrescentava-se o peso da doença. A saúde declinava, a vista apagava-se; os remédios mais fortes só lhe davam umas melhoras precárias.
Francisco mantinha, apesar das dores, uma alegria apaziguadora.
Mas o seu espírito desprendia-se cada vez mais das preocupações terrenas; o seu recolhimento tornava-se mais profundo. Os que estavam à sua volta percebiam a aproximação da hora da recompensa.
Há cerca de dezoito anos que Francisco levava uma vida de heroica pobreza,
Quando Frei Elias, seu vigário no governo dos Frades Menores, teve uma revelação: o Santo não passaria mais de dois anos aqui na terra. Seguindo a ordem recebida, Elias transmitiu a São Francisco a comunicação celeste.
O Santo não temia a morte. Tinha cortado, pelo seu despojamento total os vínculos que o ligavam à terra; tinha, a exemplo do Apóstolo, conquistado o domínio sobre o seu corpo: a sua alma devia desprender-se sem dilaceramentos do seu invólucro físico.
Se não tremia perante a aproximação do momento fatal, queria pelo menos preparar-se para comparecer diante do Soberano Juiz.
Partiu, pois, rumo à solidão, para se recolher por algum tempo.
Durante o verão de 1224 esteve no pequeno convento de Alverne. Era um eremitério rústico, construído precariamente no cimo de uma montanha escarpada.
As grutas abertas nas rochas, os bosques povoados de pássaros, o afastamento dos centros habitados tornavam o sítio encantador e particularmente propício aos exercícios da contemplação.
O Santo amava esta morada que outrora lhe tinha sido dada pelo Conde Orlando, senhor de Chiusi.
Logo que chegou ao lugar do seu retiro, Francisco iniciou um jejum de quarenta dias em honra de São Miguel. Consagrava o tempo à oração, que lhe propiciava delícias que nunca lhe pareceram tão saborosas.
Suplicou ao Senhor que lhe desse a conhecer as obras às quais deveria consagrar os últimos dias da vida. Como resposta, Deus cumulou-o com abundância de suavidades interiores.
Então o Santo recorreu ao seu procedimento habitual: abriu o Evangelho ao acaso, por diversas vezes, esperando encontrar ali uma indicação. Por diversas caiu no relato da Paixão.
Esta coincidência surpreendeu-o: concluiu que o Salvador queria uni-lo mais intimamente aos seus sofrimentos.
Os calores estivais declinavam; o Alverne já se revestia com os esplendores do outono.
Debaixo das grandes árvores, cuja folhagem se tornava dourada, Francisco pensava na adorável imolação de Cristo, quando subitamente lhe apareceu um Serafim resplandecente de luz.
O Anjo aparentava uma semelhança admirável com o Salvador pregado no patíbulo.
O Santo reconheceu estupefato os traços do divino Crucificado; a sua alma inflamou-se com amor tão ardente e tão doloroso, que o seu débil corpo não aguentou: caiu em profundo arrebatamento.
Considerava-se insignificante e queria ser
considerado assim.
O seu contínuo recolhimento conferia-lhe uma plácida alegria. A sua fisionomia irradiava habitualmente uma tranquila felicidade.
Francisco fugia da tristeza com horror: ela quebra o fervor da alma; torna-a indolente e lança-a no desânimo. Considerava a tristeza maldita, como uma das tentações sutis onde se esconde a perfídia do demônio; chamava-a, com desprezo “a doença babilônica”.
Apesar do seu caráter alegre e dos dons divinos recebidos com tanta abundância, Francisco também viveu horas sombrias. Lutava, então, contra a melancolia que o invadia; para vencer esse estado de espírito, chegava a recorrer a jogos infantis.
Pegava em dois paus e simulava um violino e o seu arco; cantava com voz sonora algum cântico piedoso, fazendo-se acompanhar por este instrumento imaginário.
A vitória não se fazia esperar: a nuvem dissipava-se; o cântico expirava; Francisco entrava
em êxtase.
Em Rieti, alguns meses antes da morte,
Faziam-lhe um tratamento muito doloroso aos olhos. Ele procurava resistir à dor, que às vezes se tornava agudíssima; procurava, sobretudo, afastar a tristeza que o invadia.
Pensou que um pouco de música o podia distrair; pediu, pois, ao seu companheiro que pedisse uma viola emprestada: “Será um alívio para o meu corpo atormentado de males”.
O irmão, embora excelente religioso, era um pouco acanhado de ideias. Pensou que, se se encarregasse  de uma incumbência dessas, ia escandalizar os fieis, e talvez diminuir no espírito deles o prestígio de Francisco. O Santo não insistiu.
Mas, na noite seguinte, um personagem misterioso veio dar-lhe um concerto debaixo da
sua janela.
O músico tocava no seu alaúde melodias tão suaves, que Francisco pensou estar a ouvir um eco das harmonias celestes; esqueceu os sofrimentos e a sua alma, elevando-se pouco a pouca acima das misérias terrestres, acabou por se perder em Deus.
A oração passiva inclui diversos graus: eleva-se do simples recolhimento até às alturas daquele“matrimônio espiritual”, em que o contemplativo parece, na expressão de São Paulo, formar com Deus um só espírito.
“Aquele que se une ao Senhor constitui, com Ele, um só espírito”.
Da quietude ao êxtase, Francisco percorreu todas as etapas. Em breve, subiria ao mais alto cume,onde se consuma a perfeição do mistério unitivo.
Por um singular privilégio, a gloriosa transformação que a alma conhece neste último estágio da vida mística haveria de refletir-se no seu corpo: Cristo ia gravar na carne do nosso Santo os estigmas da Paixão.
A oração contínua do nosso Santo produziu frutos abundantes e preciosos.
Ela acendera e mantinha sem cessar a imensa fogueira que lhe devorava o coração. “No fogo, o amor me lançou”, cantava Francisco.
Apesar dos seus esforços, nem sempre conseguia dominar a santa paixão que fervia dentro de si; por vezes, as pessoas viam uma chama que revelava o segredo da alma.
O Nome de Deus fazia-o estremecer: quando o ouvia pronunciar, não podia conter a emoção; o rosto corava; uma força misteriosa fazia-o mergulhar num recolhimento profundo.
O amor prova-se com obras; enquanto não ultrapassar a esfera das ternuras sensíveis, pode-se duvidar justificadamente da sua autenticidade.
A caridade perfeita torna a vontade do homem semelhante à de Deus: é esse o seu caráter essencial. São Francisco não o desconhecia; a sua única preocupação era realizar sem demora aquilo que o Senhor dele esperava.
Se tinha renunciado à vida mundana, se tinha, com o coração dilacerado partido da casa paterna, se tinha contraído com a dona Pobreza uma sublime aliança, não fora para obedecer às ordens do Alto? Como Cristo, Francisco podia dizer: “O meu alimento é fazer a vontade d’Aquele que Me enviou e realizar a sua obra”.
Francisco levou a aceitação da Vontade divina até o ponto culminante, o abandono total nas mãos da Providência. – Durante uma das suas doenças, teve grandes sofrimentos.
O religioso que estava ao lado do catre a cuidar dele mostrava uma compaixão exageradamente humana. “Meu pai – dizia – a provação não está a ser dura demais? Peça a Deus que o trate com menos rudeza”.
Estas palavras feriram o Santo na delicadeza do seu amor: deu um brado de dor e indignação.
Estranhava que não se reconhecesse no sofrimento um dom do Pai celeste, que está atento ao bem dos seus filhos.
Francisco colheu outro fruto da oração: a humildade.
Esta virtude fundamental é o sinal seguro da intervenção divina: quando uma alma entra em contato com Deus pelo toque da graça mística, conhece por experiência o nada da nossa
miserável natureza.
Os Santos vivem como que esmagados pela noção do seu nada; quem não experimentou este sentimento nunca penetrou verdadeiramente na oração passiva.
Francisco estava profundamente unido a Deus; uma humildade prodigiosa lhe irradiava da alma.
Nos seus percursos apostólicos, as populações acorriam à sua passagem. Queriam vê-lo, ouvi-lo, receber-lhe a bênção; procuravam tocar-lhe a orla da túnica. Era venerado em vida como se veneram as relíquias dos Santos.
Ora, um dia, o entusiasmo popular manifestou-se com mais ardor do que o habitual e Francisco passou insensível por entre as ovações. Todavia, o seu companheiro, temendo que alguma tentação de vaidade o assaltasse, sentiu-se no dever de o avisar.
O Santo tranquilizou-o: estas homenagens, explicou, não podiam deter-se no nada de sua pessoa; dirigiam-se a Deus, que se dignava servir-se da sua miséria: aquilo só lhe servia para se humilhar ainda mais.
Assim compreendidas, aquelas aclamações não lhe pareciam exageradas; pareciam-lhe
até insuficientes.
Protestava quase sempre contra os elogios que lhe eram dirigidos. “Não se deve canonizar um homem antes da morte. – dizia com vivacidade – Ainda posso cair em pecado”.
Por outro lado, as manifestações de veneração faziam-no sofrer. Pensando que não as merecia, feriam-no na sua retidão.
Era tal, com efeito, a sua lealdade, que nem sequer suportava a sombra do fingimento. – “Ah! Vocês pensam que sou Santo!, exclamava um dia em que lhe tinham servido um frango por causa de seu estado de saúde. Os Santos mortificam-se; eu, pelo contrário, comi frango hoje”.
Como todos os Santos, Francisco foi uma alma de oração; subiu os mais altos degraus da contemplação passiva.
Quando ainda se deixava ofuscar pelas vaidades mundanas, duas graças de oração desceram sobre ele, uma depois da outra; essas graças fizeram-lhe compreender o nada das criaturas e inebriaram-no com uma doçura celeste; formaram nele um homem novo.
A partir de então, viveu um recolhimento tão profundo, que nem sequer as ocupações exteriores
o interrompiam.
Por aquele dom inefável, próprio dos místicos, sentia habitualmente nele a presença de Deus. Dirigia ao Hóspede adorável do seu coração o olhar da inteligência e os ímpetos do amor.
As invocações morriam-lhe nos lábios; do mais íntimo do seu ser brotavam esses gritos sem palavras que encantam o Altíssimo pela intensidade do silêncio ardente. Tal era a sua
oração habitual.
Às vezes, ficava tão absorto nela que não via o que se passava à volta.
Nas viagens, acontecia-lhe atravessar aldeias sem se aperceber e sem notar sequer o desvelo das multidões que não poupavam as manifestações de veneração.
Outras vezes ainda, sobretudo para o fim da vida, a graça de oração inundava-lhe a alma com tanta abundância, que a submergia. Tudo se desvanecia em seu redor: entrava em êxtase.
Sentia a seu lado a presença quase permanente da Humanidade santa de Cristo. Esta divina companhia comunicava-lhe uma força soberana e inundava-o de suavidade.
Vivendo assim numa oração contínua.
São Francisco devia recomendar naturalmente aos seus religiosos a prática do recolhimento. Recordava-lhes que a união com Deus é a condição essencial da facundidade apostólica.
Só o homem de oração – explicava ele – consegue ir até o extremo de suas forças e realizar coisas verdadeiramente grandes ao serviço de Deus.
Por outro lado, não se contentava com as simples exortações. Procurava favorecer o recolhimento.A Ordem franciscana crescia com uma rapidez prodigiosa.
Nas cidades constituíam-se numerosos mosteiros. Francisco quis formar, longe das cidades tumultuosas, ermos perdidos em zonas desabitadas.
Era com gosto que enviava para lá os irmãos que desejassem retemperar forças na solidão. Ele próprio gostava de se retirar para esses lugares nas suas viagens apostólicas.
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Fonte: retirado do livro “São Francisco de Assis” do Rev. Pe. Thomas de Saint-Laurent.

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